FALTA DE PERSONALIDADE

- E músicas?
- Ah, eu sou bem eclético.

SITUAÇÃO MOMENTÂNEA

Estava pensando. Ouvindo. Observando. Tentando alguma palavra para a noite que não tinha fim. Não sabia qual era a saída.
Apenas bebeu. Gente demais.
Tentava descobrir o que esperavam, mas sabia que não chegaria a nenhuma conclusão, porque no dia seguinte já voltariam a ser verdadeiros.

CONVERSAÇÃO

- Tu já parou para observar essas pessoas andando de um lado para o outro? Parecem que estão nervosas. Ansiosas. Mas é uma ansiedade que nem elas sabem o motivo. Na verdade, acho que estão todos meio loucos. Se matam para conseguir preencher seus interesses individuais que, após preenchidos, dão lugar a outros. E mais outros. E assim vão alimentando seus egos insaciáveis. Para quê? Gente louca. Bando de Loucos. Isso que tenho a dizer. Ah, vai dizer que não é? Tá bem, então você é o Senhor Normal... Eu? Você me vê cercado por esse bando de anormais, por acaso?

O dono do bar se aproximou.

- Com licença, mas não há ninguém aqui com o senhor. E já estamos fechando. Sua conta.

O homem olhou para a cadeira vazia ao seu lado e sussurrou alguma coisa. Pagou o garçom e retirou-se.

ESTADO DE CHOQUE

Domingo. Ele estava de ressaca depois de passar uma noite um tanto pesada. Sua ex ligou.

- Minha mãe morreu. – Disse a voz angustiada.
- Nossa.
- Preciso que você venha.

Podia ser um truque. Ela já havia feito parecido, no dia em que afirmou ter sido estuprada por três homens e jogada nua na porta de uma igreja.

- Não posso.
- Ela morreu, caralho!
- Eu entendi, mas não vou trazê-la de volta... caralho.
- Hã?
- Olha, eu ainda não dormi. Também estou quase morrendo aqui. E nem por isso liguei para ninguém. Então meus pêsames. Tchau e descanse em paz. Desligou e abriu uma cerveja. Ela ligou novamente. Parecia um bixo do outro lado da linha. Estava realmente apavorada. Ele foi.

Quando chegou era aquela choradeira clássica. Óculos escuros. Mulheres com vestidos pretos, alguns bem justos, por sinal. Depoimentos sempre positivos sobre o falecido. E ainda não era o velório. Ficou pensando como seria quando fosse ele o morto. Ela apareceu, o abraçou e deu uma mordida em sua orelha.

- Vamos subir?

Ele percebeu os olhares oblíquos dos parentes da moça, mas decidiu acompanhá-la. Talvez ela apenas estivesse em algum tipo de estado de choque, pensou. Ela mostrou o frasco vazio de veneno e começou a arrancar as roupas dele, que também entrou em estado de choque.

TONELADAS DE NADA

Então ficaram lá falando e falando e falando. Eu ouvia e ouvia e ouvia. O mais engraçado é que todos sabiam que tudo não passava de perca de tempo. Um espaço vazio de suas vidas sempre preenchido com uma tonelada de bobagens egocêntricas.

Enquanto isso eu preenchia o meu espaço vazio pensando em como sair dali o mais rápido possível.

UMA QUESTÃO DE ESCOLHA

Sempre existem duas maneiras de fazer algo. Mas as pessoas, esses seres que se preocupam em sentir medo de suas próprias existências, sempre complicam e escolhem as piores. Eu escolhia as melhores, ou seja, as mais simples. Que não ocupassem tempo, que poupassem discursos ensaiados, que, aos olhos de alguns, pareciam perversas e imorais. A vida ficava mais leve. O espírito mais flexível e estimulado. A bebida mais suave.

Ocorreu-me esse pensamento enquanto terminava meu conhaque. Eu olhava as pessoas se chocando pela calçada; franzindo as testas para os celulares; disputando uma corrida sem fim. Então liguei para Sofia. Em meia hora estávamos em minha casa com uma bela garrafa de vinho, ouvindo uma bela música, com suas belas pernas, discutindo sobre as belas escolhas que as pessoas deixavam de fazer.


INSISTÊNCA

- Algumas pessoas insistem em enganar a si mesmas. Acreditam ser inteligentes. Acreditam ser religiosas. Acreditam ser educadas. Acreditam ser mais importantes. Acreditam não ter preconceitos. Acreditam ser respeitáveis. Acreditam que fazem o bem...
- Talvez essa ilusão seja um apoio para elas.
- Mas elas também acreditam que isso não seja uma ilusão.

AUTORIZAÇÃO SANTA

Sua saia longa e o decote que parecia sufocá-la não conseguiam esconder a sua verdadeira espiritualidade. Ela se esforçava para me explicar como Jesus retornaria e como nos salvaria de todos os pecados. Ou era Deus? Não prestei atenção. Era mesmo uma santa. Eu estava apaixonado. Como fazia muito calor a convidei para entrar e tomar um copo d’água. Ela sentou-se e peguei duas cervejas na geladeira. Entreguei uma a ela. Ela sorriu olhando para baixo e recusou. Sentei ao seu lado e dei um beijo no seu pescoço suado e salgado. Dei um gole na minha cerveja e ofereci novamente. Ela aceitou.

- Quando mesmo que Ele volta? – perguntei

Ela abriu a blusa e falou, com os lábios tocando minha boca, que me deixava ser Ele. Pude sentir seu hálito imaculado como se fosse uma longa tragada. Era a sua autorização. E o meu deleite.

MESMO DESCONFIADO ELE ATÉ QUE GOSTOU

Era o seu dia. Sentia que era. Sentia-se um pouco com o sentimento que atinge as pessoas em vésperas de final de ano.
O que poderia dar errado? Estava longe de quem não gostava e perto de quem amava.
O espírito leve.
Serviu um duplo sem gelo e sentou-se em frente a sua casa enquanto olhava a chuva que começava. Estava tudo meio clichê. Mesmo desconfiado ele até que gostou, porque sabia que tais sentimentos não costumam durar muito. Ainda mais quando envolvem clichês.

TÉCNICA APURADA

Quando acordei, a primeira coisa que vi foram aqueles olhos gigantes dentro de um rosto redondo e rosado como um jovem leitão me encarando da poltrona ao lado. Tive um pequeno susto. Mas ao mesmo tempo esses olhos não me enxergavam, pois pareciam estar olhando, vidrados, para algo que estivesse antes do meu rosto. Estavam em transe. O rosto redondo era de uma moça mais redonda ainda, que estava chupando seu polegar. Ela o sugava como um bebê. Fechei os olhos. Que merda, pensei. Abri novamente e ali estavam os lábios fazendo barulhinhos úmidos sobre o dedão. Eu conhecia um amigo que era cheio desses TOCs, mas ele nunca chupou o dedo. Ela chupava. Instantaneamente imaginei as maravilhas que ela não faria com sua técnica apurada. Até daria para encarar.

De repente ela arrotou baixinho, quase tímida. Sempre em transe. Pigarreou e seguiu no seu deleite. Olhei para frente. Restavam mais de três horas de viagem. Eu tinha na mochila um cantil com uísque para menos de uma e fiquei um pouco ansioso. Acho que esse era o meu TOC.

UM SILÊNCIO ACONCHEGANTE

Alguns comiam bolinhos que traziam de casa. Trocavam sorrisos gelados. Eu sentia que começava a ficar sóbrio.

- Siiiim, tá todo mundo super comprando, guria! – grunhiu uma garota que lambia os dedos sujos com algum doce, e logo após cumprimentou sua amiga de uma forma que parecia ser um gesto criado só por elas.

Pedi licença e me retirei um tanto angustiado.

O sol estava laranja. Acendi um cigarro e sentei na grama. Um ar morno massageava meu rosto. Agradável. Um silêncio aconchegante.

SÓ É PRECISO DE ALGUMAS DOSES DE INFLUÊNCIA

Ele estava com a barba por fazer há semanas.
- Por que não corta essa barba?
- Acho que nós precisamos nos desapegar desse mundinho que estamos habituados, saca?
- Não saco. O que é isso?
- Um ukulele – respondeu. – E começou a dedilhar o instrumento com os olhos fechados.
Ela ficou observando aquilo por alguns segundo como se estivesse enxergando algo estranho.
- Eu conheci outro cara, SACA?
- O amor é assim, deve ser compartilhado.
Ela suspirou irritada e foi até a geladeira pegar uma cerveja. Quando voltou ele estava completamente pelado no sofá.
- Que porra é essa?
- Isto é a natureza. Você não saca a natureza?

Ela estava sentindo aquela vergonha alheia. Aquela que sentimos quando vemos algum imbecil fazendo algo imbecil. Afinal, ele sempre odiou toda aquela postura ativista-hippie-sustentável-amo-todo-mundo. Até ler uma reportagem onde afirmavam que isso era uma tendência. Esse era o fato que ela não engolia. Saber que ele não era aquilo.
 Ficou mamando sua cerveja esticada no sofá, refletindo sobre o quanto as pessoas são influenciáveis. Acabou a bebida e arrumou suas coisas.
- Tchau, pra ti. Enfia esse uku... enfia esse troço na bunda.
Saiu batendo a porta.

Ele deitou-se no chão. Pegou o instrumento e o encarou com um olhar meio duvidoso.

Sorte que ela já havia indo embora.

[DES]COMPROMISSO

Estava ali há duas horas esperando. Calor. Muitas pernas de fora.
Bebeu mais uma ceva.  Sentiu-se leve. Relaxou um pouco e desligou o telefone.
Melhor deixar para amanhã, pensou.
E deixou.


NARIZ DE APITO

Até tentou o Rivotril, mas acabou fritando. Acabou acabado. Amanheceu mais magro. Parecia até elegante. Sorriu sozinho de um jeito meio abobado. Talvez ainda estivesse bêbado. Falava umas bobagens e parecia que cada olho olhava para um lado.

- E aí, tá malzinho?
- Até que não. Tem ceva aí?
- Tem, mas só se fazer esse apito de novo? Apita aí.
Inspirou com força se rindo todo com o barulho que fez.

- Tá, pode pegar ali na geladeira.


TUDO QUEBRADO

Todos os seus discos estavam em pedaços espalhados pela sala. Todos. Quebrados. Stones, Beatles, Animals, Who, Jefferson Airplane, Free... Não existiam mais. Não passavam de lixo. Ele desconfiava (na verdade tinha certeza) que tivesse sido sua ex. Sabia que tinha que ter trocado a fechadura. Só podia ser sua ex. Haviam lhe dito que ela estava com um tipo esquisito, líder de uma espécie de religião ou seita. 

Ele devia ter acreditado. Ouviu que eles até matavam gente. Gente como ele. 

Alegavam absurdos sobre a salvação do planeta e defendiam ideologias sem fundamentos que não eram diferentes das demais religiões. Me fodi, pensou. Havia gasto grana pra caralho, e, com a sua idade, não recuperaria tudo novamente. Ligou para ela. Estava puto da vida. Um homem atendeu com a voz de mau e disse que a mulher estava no banho e desligou. Tentou mais algumas vezes, sem sucesso. 

Abriu uma cerveja e sentou-se no sofá. No silêncio. Pensando que bem provavelmente sua mulher estivesse dando para o cara com voz de mau muito antes de eles terminarem. Murchou e deixou-se escorregar na poltrona. Ligaria o som, mas estava tudo no chão. Tudo quebrado. Sua vida estava quebrada.

 Abriu outra cerveja e ligou a TV.

SÓ VOU ALI DAR UMA POSTADA

Depois de duas garrafas ela resolveu ligar. No primeiro toque foi atendida por uma voz sonolenta.

- Alou.

- Oi. É a Bia. Que cê tá fazendo?

- Você está bêbada?

- Ai, que cê tá fazendo?

- Nada demais. Estava... lendo...

- Lendo os perfis de suas centenas de amigos na rede social e se informando sobre o que cada um está comendo e bebendo e vestindo e protestando e curtindo, enquanto você fica escrevendo “lindo” para cada foto de bicho e frase de efeito que apareça na sua frente e imaginando como as pessoas podem ter uma vida tão dinâmica e virtuosa e você nem ao menos tem algo para compartilhar ou alguém para trepar?

- Você exagera.

- Vinho ou cerveja?     
  
- Você que sabe.

Em uma hora Bia chegou. Como já estava no vinho, seguiu no mesmo, e para garantir levou também cervejas. As colocou na geladeira e abriu o vinho.

- Cada vez que venho aqui você está melhor, hein - disse ela.

Ele sorriu e serviu-se. Ela apertou sua bunda.

- Realmente você parece cada vez melhor.

Ela o agarrou. E como quem lembra de algum compromisso importante, ele simplesmente parou de beijá-la e apontou o celular para sua taça, tirou uma foto, aplicou um filtro que dava um ar retrô e postou em todos as redes sociais que tinha cadastro.

- Posso marcar você? - perguntou, sem desviar os olhos do aparelho, enquanto ela recolocava o casaco.

QUESTIONÁRIO

A moça do recrutamento o chamou, finalmente. Só que foi apenas para trocar o local da espera, pois ela se retirou e pediu para que ele aguardasse dentro de uma sala. Estava apenas ele. Pensava onde ela teria ido e como era ridícula a situação. 35 minutos depois a moça retornou sem nenhuma explicação e sentou-se em sua frente.
- Bem, me fale um pouco de você.
- Sim... mas... o que quer saber exatamente?
A moça suspirou. Fez algumas anotações.
- Hum. Quais são suas qualidades?
- Eu ia falar um pouco sobre mim.
Mais anotações.
- Seus pontos negativos?
Ele se ajeita na cadeira.
- Eu queria...
- Algum problema? Você parece nervoso. Tudo bem, é normal.
- Não estou nervoso.
- É comum você se irritar fácil assim?
- Mas...
- Quais seus planos para daqui dez anos?
- Eu ainda estou realizando alguns projetos que podem sofrer alterações, portanto, é um período um pouco distante para uma resposta objetiva.
- Você parece ter dúvidas sobre o quer para você mesmo. Aqui na empresa para alcançarmos as metas não pode haver dúvidas.
 - Correto. Sem dúvidas.
- Isso foi uma ironia?
- Como?
- Bem, você gostaria de colocar algo, alguma dúvida?
- Não, não. Obrigado.
- Certo. Até o final da semana nós entraremos em contato.

COMO MANDA A CARTILHA


- Cara, eu já li todas as sinopses dos filmes do Bergman e do Truffaut. – Argumenta Naldo, inconformado
- Mas é que tu precisa trocar essa roupa também. Uma camiseta com a foto de uma banda indie que ninguém conheça já ajuda. – Explica Lucas
- Mas eu não sei nenhuma, sei lá... alguma dica?
- Também não peça dicas. Você deve estar sempre sacando tudo, saca? Mas vai na internet. É cheio de blogs, é só procurar.

Um amigo deles entra no bar e vai até a mesa para cumprimentar. Naldo se levanta, todo sorridente.
- Olha só quem apareceu!
O amigo dá um sorriso discreto.
- E aí.
- Quem é vivo sempre aparece. – Continua Naldo, falando alto enquanto seu amigo já havia até sentado em outra mesa.

Lucas tira seus óculos Ray Ban Wayfarer, passa os dedos pelo bigode enquanto encara Naldo.
- Desse jeito tu nunca vai ser descolado. Tem que ser blasé. B-l-a-s-é. Oh, man.
- Uhum.
- Além disso, procure falar ironias e fazer sinal de aspas com os dedos e, pelamordedeus, tente esquecer - fez o sinal de aspas - de fazer a barba.
- Sim senhor, senhor. – Respondeu Naldo, tentando descontrair.
Lucas ficou sério.
- Cara, isso é tipo, uma piada clichê. Se não tem nada cool para falar, responda apenas OK, OK?
- Okay.

SE AO MENOS TIVESSE UM PLANO B


Ela disse para si mesma que naquela noite estaria pelo crime. Animada, colocou sua melhor lingerie, aquele vestido que tinha usado no carnaval de Recife, o perfume que dizia ser irresistível e foi conhecer aquele lugar com “discrição total” que descobriu na internet.

Para perder o nervosismo tomou alguns drinks antes de entrar. No entanto, decepcionou-se ao encontrar alguns pequenos grupos de pessoas com expressões patéticas, com o peso três vezes acima do normal ouvindo uma música que estava sendo cantada por um senhor tocando teclado. Tudo cheirava a suor de virilha. Nada do que havia lido existia ali. Onde ela foi se meter? Estava tensa. Alguns senhores muito bêbados a encaravam como mortos de fome. Começou a ficar enjoada com aquele cheiro de podridão a perfume de cabaré. Foi vomitar no banheiro e acabou encontrando uma senhora dormindo na privada. Deu tempo de desviar, mas um pouco respingou na cara da velha, que nem se moveu. Saiu correndo daquela imundície sem consumar qualquer tipo de crime para a qual estava disposta naquela noite e frustrou-se.

Nunca se sentiu tão bem em voltar para a casa. Tirou sua lingerie, seu vestido de carnaval, tomou um banho para tirar o perfume irresistível e vestiu um pijama bege e folgado que nunca contou para ninguém que adorava e deitou-se sozinha pensando o quanto era difícil fugir da realidade.

PÚBLICO CATIVANTE



Foram empolgados para o show. O pessoal vai estar em peso, diziam.

Três horas de discotecagem entediante e nostálgica. Só então a primeira banda sobe no palco para dar início aos trabalhos. Os amigos vão registrando o espetáculo para depois postar em algum lugar na internet qualquer coisa que tenha como título algo parecido com “A Convergência Cultural” ou “Faça Você Mesmo”.

O público é cativante.

Grupo um: Jovens rebeldes embriagando seus egocentrismos com vinho barato, saltitantes com seus fígados na flor da idade.

Grupo dois: Os descolados que se alimentam do universo cool e sacam tudo das últimas tendências da moda underground. Posam de intelectualóides e ativistas pseudohippies.

Grupo três: Veteranos decadentes que já passaram pelos dois grupos anteriores e agora mendigam restos de cerveja quente e cigarros com eles.

- E nós?
- Nós somos os idiotas que perdem tempo analisando isso.

PRO DIABO QUE O CARREGUE

Enxerguei ele vindo em minha direção. Estava na outra calçada, então seria fácil eu disfarçar que não o tivesse visto, assim como fazemos quando encontramos um conhecido inconveniente na rua, no restaurante, no ônibus. O pior é quando isso acontece exatamente depois de termos dado uma desculpa justamente para evitar o encontro com a pessoa. Quando se percebe a tempo, até se pode dar uma corridinha e entrar em outra rua. Mas acontece que fui pego de surpresa, e ele me percebeu. Mesmo assim, olhei para o chão e segui. Mas com o canto do olho percebi que ele havia atravessado a rua.
- Cara, não me viu? – perguntou. E falou sério, pois percebi a ingenuidade.
- Mas olha só! - falei.

Eu estava nauseado de ressaca e não havia dormido ainda. Percebi que ele segurava uma bíblia. Então, como mágica, sem eu perceber como aconteceu, ele já estava falando sobre algum conto de fadas que havia naquele livro. Eu suava. Ele tinha um brilho nos olhos. Parecia ter tesão pela palavra de deus. E tinha. Logo, ele deveria sentir tesão por deus. Fiquei pensando nisso sem ouvir o que ele dizia. Senti o embrulho. O azedume na garganta. Vomitei em seus pés. Bastante.

 - Você está bem?- perguntou, sem saber o que fazer.
- Acho que estou... possuído... pelo demônio. – falei, olhando nos seus olhos assustados como de uma criancinha.
- Calma... Deus... – ele falou. Tremia e segurava a bíblia perto de mim como se fosse uma espécie de escudo.
- Não! – gritei com uma voz rouca numa ótima interpretação do capeta. Ele bateu com a bíblia em minha cabeça. Eu bati o pé no chão como se espantasse um cachorro e ele saiu correndo. Provavelmente iria contar para o seu pastor o que lhe acontecera e daria todo seu dinheiro em troca de uma bênção divina.

NÃO PODIA PENSAR MUITO

Enquanto ele estava no banheiro do bar ficava lendo os recados deixados na porta. E um chamou sua atenção. Estava escrito que um homem pagava para comerem sua esposa. Ulisses, que já era um velho viúvo e com uma avançada catarata que o impedia de “dar bóia para os olhos” (assim se referia ao ato de olhar as garotas na rua) então anotou o número em seu celular com certa dificuldade, limpou-se e foi para uma mesa tomar algumas doses de Vermute, como sempre fazia. Quando acabou, ligou para o número.


Uma voz masculina atendeu e confirmou ser o autor do anúncio.

Ulisses chegou ao endereço informado pelo homem. Tocou a campainha. Um casal de gordos atendeu. Pareciam ter quase a idade de Ulisses, mas talvez ainda se iludissem com suas vidas, enquanto Ulisses já abraçara a realidade da sua. Os dois sorriram e o convidaram para entrar.

O marido explicou que devido ao seu peso ele não conseguia mais transar com sua patroa, pois ela também era enorme, e por isso resolveu deixar o anúncio na porta do banheiro. A gorda ruborizou e remexeu-se na poltrona.

- Entendo. – Falou Ulisses com um olhar embriagado para o gordo. – Mas eu pensava que fosse... 

- Uma gostosa – adiantou o marido gordo. – Você acha que eu pagaria para comerem uma gostosa?

Ulisses ficou sem jeito e levantou-se para se desculpar e ir embora. Então o gordo tirou um revólver da cintura, engatilhou e apontou.

O pobre Ulisses sentou-se novamente. A gorda acomodou-se ao seu lado toda sorridente, e sem cerimônias abriu a calça dele e começou o trabalho. Ele olhou para o gordo e a arma continuava apontada. A senhora levava jeito. E logo já estava nua em pêlo estendida como uma grande almofada no chão. Ulisses não podia pensar muito e atirou-se sobre ela.

O homem só abaixou a arma quando já haviam terminado. Esperou se vestirem e entregou o dinheiro para Ulisses, que se despediu e voltou para o bar para tomar um traguinho de seu Vermute.