TÉCNICA APURADA

Quando acordei, a primeira coisa que vi foram aqueles olhos gigantes dentro de um rosto redondo e rosado como um jovem leitão me encarando da poltrona ao lado. Tive um pequeno susto. Mas ao mesmo tempo esses olhos não me enxergavam, pois pareciam estar olhando, vidrados, para algo que estivesse antes do meu rosto. Estavam em transe. O rosto redondo era de uma moça mais redonda ainda, que estava chupando seu polegar. Ela o sugava como um bebê. Fechei os olhos. Que merda, pensei. Abri novamente e ali estavam os lábios fazendo barulhinhos úmidos sobre o dedão. Eu conhecia um amigo que era cheio desses TOCs, mas ele nunca chupou o dedo. Ela chupava. Instantaneamente imaginei as maravilhas que ela não faria com sua técnica apurada. Até daria para encarar.

De repente ela arrotou baixinho, quase tímida. Sempre em transe. Pigarreou e seguiu no seu deleite. Olhei para frente. Restavam mais de três horas de viagem. Eu tinha na mochila um cantil com uísque para menos de uma e fiquei um pouco ansioso. Acho que esse era o meu TOC.

UM SILÊNCIO ACONCHEGANTE

Alguns comiam bolinhos que traziam de casa. Trocavam sorrisos gelados. Eu sentia que começava a ficar sóbrio.

- Siiiim, tá todo mundo super comprando, guria! – grunhiu uma garota que lambia os dedos sujos com algum doce, e logo após cumprimentou sua amiga de uma forma que parecia ser um gesto criado só por elas.

Pedi licença e me retirei um tanto angustiado.

O sol estava laranja. Acendi um cigarro e sentei na grama. Um ar morno massageava meu rosto. Agradável. Um silêncio aconchegante.

SÓ É PRECISO DE ALGUMAS DOSES DE INFLUÊNCIA

Ele estava com a barba por fazer há semanas.
- Por que não corta essa barba?
- Acho que nós precisamos nos desapegar desse mundinho que estamos habituados, saca?
- Não saco. O que é isso?
- Um ukulele – respondeu. – E começou a dedilhar o instrumento com os olhos fechados.
Ela ficou observando aquilo por alguns segundo como se estivesse enxergando algo estranho.
- Eu conheci outro cara, SACA?
- O amor é assim, deve ser compartilhado.
Ela suspirou irritada e foi até a geladeira pegar uma cerveja. Quando voltou ele estava completamente pelado no sofá.
- Que porra é essa?
- Isto é a natureza. Você não saca a natureza?

Ela estava sentindo aquela vergonha alheia. Aquela que sentimos quando vemos algum imbecil fazendo algo imbecil. Afinal, ele sempre odiou toda aquela postura ativista-hippie-sustentável-amo-todo-mundo. Até ler uma reportagem onde afirmavam que isso era uma tendência. Esse era o fato que ela não engolia. Saber que ele não era aquilo.
 Ficou mamando sua cerveja esticada no sofá, refletindo sobre o quanto as pessoas são influenciáveis. Acabou a bebida e arrumou suas coisas.
- Tchau, pra ti. Enfia esse uku... enfia esse troço na bunda.
Saiu batendo a porta.

Ele deitou-se no chão. Pegou o instrumento e o encarou com um olhar meio duvidoso.

Sorte que ela já havia indo embora.

[DES]COMPROMISSO

Estava ali há duas horas esperando. Calor. Muitas pernas de fora.
Bebeu mais uma ceva.  Sentiu-se leve. Relaxou um pouco e desligou o telefone.
Melhor deixar para amanhã, pensou.
E deixou.