DITO E FEITO

- Querida, espera. Foi só...QUERIDA! Porra.
Ela não deu ouvidos e saltou para fora do carro com aquela saia que o deixava preocupado e cumpriu com o que havia dito minutos antes. 
Sim, ela disse: “Vou sair e dar para o primeiro que eu ver na rua”.

GRANDE OCASIÃO

Há muito tempo ela não fazia aquilo. Até comprou um vestido especialmente para a ocasião. Mas estava nervosa e insegura com sua aparência. Perguntava-se se ele não iria brochar ao ver sua pele envelhecida e mal tratada pelo tempo. Tomou mais uma taça de vinho - também comprado especialmente para ocasião - e foi em frente ao espelho, ansiosa. Olhou-se. Ajeitou os seios que iam quase até a barriga. Imaginou quem teria desejo de acariciá-los. Caminhou até a janela. Ele estava atrasado. Ela estava com medo. Lembrou-se dos tempos em que era elegante e “exalava sexo”, como costumavam dizer os garotos da rua. E algumas garotas também. Ela era o terror. Esboçou um sorriso e sentiu-se um pouco mais relaxada. Um pouco mais bêbada.

Nada dele aparecer. Pensou em ligar, mas sentiu que poderia deixar transparecer sua insegurança. Depois daquela idade não cairia bem. Abriu outra garrafa. Esta não era para a ocasião. Talvez para uma próxima. Mas que próxima? Se nem a primeira houve, pensou ela, deitada no sofá e debochando de si mesma.
Ligou para ele algumas vezes. Nada.
Levantou-se cambaleando e foi para sua cama que havia sido preparada para a ocasião e dormiu.

APENAS RESPIRAR UM AR MENOS SUJO


Salas de emergência sempre foram lugares ótimos para casualidades. Eu estava há mais de duas horas sentado ali dentro. Fazia uns 40 graus. Minha febre uns 39. Algumas pessoas desmaiavam, outras vomitavam. Alguns vomitavam e depois desmaiavam. Além das que choravam. Quase entrei no clima, mas resisti à tentação passando os olhos em uma revista de dois anos atrás. De repente uma senhora entra na sala abrindo espaço com o seu decote e suas pernas que pareciam mover-se em câmera lenta. No mesmo instante, um garoto que parecia meio bêbado ao meu lado foi chamado. As pernas então ocuparam o lugar, em câmera lenta.

- Boa tarde – falou a dona com uma voz suave. Parecia um sussurro ao pé do ouvido.
- Boa se não fosse o calor – respondi com um sorriso tão imbecil quanto o comentário.
Ela sorriu e cruzou com elegância o par de pernas. Um homem em nossa frente vomitou pela terceira vez.
- Muito calor – ela respondeu indiferente.

Os cabelinhos de sua nuca estavam úmidos com o suor. Minhas costas derramavam febre e álcool e eu precisava respirar um pouco de ar menos sujo, mas não queria perder o lugar ao lado dela.
- Acho que vou pegar um ar ali fora – falei.
- Eu ajudo você.
- Mas você pode ser chamada e perder sua vez.
- Eu estou apenas esperando notícias do meu marido. Na verdade acredito que ele nem volte mais para casa.
Eu não quis entrar em detalhes sobre seu marido semimorto para não perder a oportunidade.
- Ok – respondi.

Fomos até um restaurante em frente ao hospital. Realmente já me sentia melhor. Pedi uma cerveja e dois copos. Eu não voltaria mais para o hospital. Febres são passageiras, o hipocondrismo é um dos males dos seres humanos. Mas ela teve que voltar para saber se o seu marido já havia morrido.

- Tem mesmo que ir? – falei, sem nada a perder, colocando a mão em seu joelho.
Ela me deixou seu número e as pernas descruzaram-se levando o decote. Estiquei-me na cadeira vitorioso e terminei a cerveja sem pressa. Queria esperar certo intervalo de tempo para chegar em casa e ligar para ela para saber notícias sobre o marido.

HISTÓRIAS QUE TOCAM O CORAÇÃO


Eu voltava para casa quando uma senhora redonda usando um óculos de intelectualóide maior que o seu rosto me abordou.
- Você gosta de ler? – perguntou.
- Gosto.
- Eu escrevo histórias que tocam o coração. Românticas, sabe?
- De uma forma ou de outra todas as histórias podem tocar.
Ela abriu um sorriso de tia e se aproveitou da minha boa vontade.
- Você é muito querido.
Devolvi outro sorriso, evitando pegar um dos seus exemplares. Ela insistiu. Peguei um. Antes de eu ler a primeira linha ela falou que cobrava apenas dois reais. Fechei o livrinho e o devolvi, agradecendo.
- Eu comprei uma cerveja agora pouco e fiquei sem dinheiro – me expliquei. E foi a verdade. E mesmo que não fosse eu iria dar a mesma desculpa. Sempre invejei as pessoas sinceras. Eu sempre precisei dar alguma desculpa.

- Qual cerveja você tomou? – perguntou.
Respondi, e a mulher lamentou por estar “trabalhando” e não poder tomar uma e resolveu me entregar um de seus escritos de presente. Ela não havia entendido que eu não queria nem de graça. Mas aceitei para me ver livre de uma vez.
- Obrigado – respondi automaticamente.

Ela colocou suas mãos em meus ombros e se despediu.

Observei sua enorme bunda se distanciando. Parecia um gigante par de bochechas que balançavam em sincronia com seu caminhar cansado da vida de inseguranças e desperdícios. Ficou parada diante de uma lata de lixo por alguns instantes e então colocou fora seus livros que tocavam o coração. Acomodou-se na mesinha em frente a um bar e pediu uma cerveja, encerrando seu expediente mais cedo e, pelo jeito, encerrando sua tentativa frustrada de se tornar uma escritora. Sábia decisão.


Aliviado por ela resolver parar de tentar tocar os corações de estranhos na rua, também coloquei meu exemplar fora.

O VELHO

Ele estava na última mesa. Havia uma mulher com ele, mas estava dormindo com a cabeça encostada na parede. Ele encarava a garrafa de vinho como se a mulher não estivesse ali. Pensativo. Parecia um velho decrépito, dos que levam suas vidas nas costas sem saber ao certo o motivo. Secou seu copo e levantou-se para ir ao banheiro. Então o reconheci. Inconfundível expressão cansada estampando uma inconformidade com o ser humano. Esperei ele voltar e me aproximei.

- Bukowski? – Perguntei

- Sim.

Ele acendeu um cigarro e deu uma tragada forte. Como se fosse um velho amigo sentei na cadeira ao lado, derramando inconveniência.

- Como vai Chinaski? – Tentei uma conversa.
Para meu espanto o velho respondeu.

- Estou pensando em acabar com ele. Vou matá-lo. Ele não merece conviver com tanta mediocridade que só pensa em enrabá-lo. – recitou.

Pedi outra garrafa, que em questão de minutos se foi. E assim com a terceira e a quarta. E incrivelmente havíamos nos esquecido da mulher que ali dormia. Ao menos eu havia esquecido. Então reparei bem. Era uma senhora com horríveis verrugas que começavam entre os seios e percorriam um caminho até o queixo. Parecia uma trilha de formigas. Toquei nelas. O velho soltou uma gargalhada rouca.

- Ela está morta. – Falou.

Toquei mais nas verrugas. Ela não se moveu. Bukowski deu uma sacudida nela.
Nada.

- Não falei?

- Falou. - Concordei, tocando na verruga que tinha mais destaque.

Levantou-se resmungando e colocando um braço do cadáver em seu ombro.
- Me ajude.

Fiz o mesmo no outro braço morto e caminhamos em direção à porta.

- Anota pra mim. – Gritou para o Mendez, o dono do bar.

Jogamos a mulher no primeiro táxi que apareceu.

- Ela está bêbada – falou Buk para o motorista. – O bar já está fechando e não havia ninguém com ela. Acho que você pode levá-la até o hospital. Coma alcoólico.

Tive que pagar a corrida antecipada. Fiquei observando o carro desaparecer no escuro.

- Ela tinha mais verrugas como aquelas? – Perguntei.

- Assustadoras.

AINDA GOSTO DESSAS PERNAS

- Cansei
- Do que?
- Cansei de olhar para a sua cara todos os dias. Nada pessoal, gosto de você. Só cansei.
- Só?
- Na verdade, acho que enjoei. Me expressei mal. Desculpe.
- Tudo bem.
- Obrigada.
- Faz tempo?
- Não lembro bem.
- Tem alguma sugestão?
- Não sei...você tem?
- Dá trabalho.
- Tem razão. Dá trabalho e não dá tempo...
- Capaz, você está ótima. Ainda gosto dessas pernas.
- Estão flácidas.
- Deixe-me ver...
- Viu só?
- É. Estão mesmo. Bem, acho melhor dormirmos.
- Também acho. Boa noite.
- Boa noite.

A VIRTUDE DA FRANQUEZA

- Não pode fumar aqui, senhor. Isto é uma igreja.
O homem apagou o cigarro no banco e encarou a jovem.
- Vocês não sentem calor com toda essa roupa em pleno verão?
A moça não se fez de rogada e esboçou uma risadinha marota.
- Para falar a verdade, eu detesto esta merda. 
Uma beata apareceu na porta da igreja com dificuldades para caminhar e a freira precisou ir ajuda-lá e se despediu.
- Obrigada por apagar o cigarro. –  Falou, olhando séria para o homem enquanto se retirava.
O senhor deu uma beliscada na bochecha direta da bunda da freira e levantou-se. Molhou os dedos na água benta, fez o sinal da cruz e foi embora.