OFERENDAS



Eu estava sozinho tomando uma cerveja e pensando em nada. Absolutamente à toa. Por mim eu viveria pensando em nada, fazendo nada, e, principalmente, ouvindo nada. No caso, ouvir nada das pessoas. Não entendo o motivo de tanta conversa, tanta tentativa de convencimento e posicionamento diante dos outros. Mas então eu estava ali quando aquele senhor chorando sentou - sem pedir licença - na minha mesa.

- O que você espera da sua vida? Pensa que vai durar para sempre? – perguntou sem mais nem menos o estranho.

- Não espero nada, e o senhor?

O homem enxugou as lágrimas.

- É disso que eu estou falando. TODOS vocês pensam que serão aceitos pelo nosso salvador sem fazer nenhum esforço para isso.

- E o que eu preciso fazer para ser aceito por esse salvador? Como é mesmo o nome? Deus?

- Desculpe, pai! – falou o homem com os olhos fechados. – Não ouse falar o nome dele em vão outra vez.

- De quem? De Deus?

O velho me segurou pelo pescoço e cuspiu na minha cara. E foi um cuspe de dar inveja. Fiquei imóvel olhando para sua cara de perdedor. Então peguei a garrafa de cerveja e quebrei em sua cabeça. Cerveja com sangue escorreram pelo seu rosto. Ele começou a rezar baixinho. Levantou-se e foi embora.

Paguei minha cerveja e quando estava indo para o estacionamento encontrei dezenas de pessoas com cruzes nas mãos me encarando e gritando “satanás”.

Fui caminhando em direção ao carro me sentindo meio rockstar, sendo ovacionado pela plateia enlouquecida. Entrei no carro, pus meu óculos escuro e sai abanando para todos e mandando beijos. Percebi que havia uma garota meio freira entre eles que parecia não estar muito à vontade. Meio deslocada. Parei ao seu lado.

- Eu sou satanás. Eu sou o teu verdadeiro salvador – falei com meu melhor tom de profeta.

Ela atirou sua cruz no chão e entrou no meu carro. Passei no mercado para comprarmos umas bebidas e fomos para minha casa fazer oferendas.

A RUIVA E SUA AMIGA


Eu estava parado no balcão com minha cerveja quando aquela ruiva se aproximou. Simplesmente ficou ali parada ao meu lado com uma expressão dura como se estivesse tensa. Por um segundo pensei que fosse doente mental. Ela disse apenas oi. Estava com os olhos vidrados.

- Oi – devolvi.


Ela continuou ali parada. Uns amigos chegaram e começamos a conversar, assim pude me livrar dela e fomos para outra parte do bar.

- Quem era aquele zumbizinho? – me perguntaram.

- Não faço ideia. Eu estava ali parado, e, de repente, ela apareceu do meu lado como um fantasma.

Enquanto estávamos rindo da esquisitice da garota ruiva, a própria aparece novamente. Imóvel. Alguns risos abafados. Dessa vez o Murilo resolveu interagir. Mas a moça parecia não ouvir ele e ficou me encarando.

- Oi – falei outra vez.

Ela se aproximou e me beijou. Nada mal para uma semimorta, pensei. Ela me pegou pela mão e me levou para o seu carro. Quando entramos vi que havia um corpo de uma garota nua na porra do banco traseiro. As portas estavam travadas. Ela me mandou tirar a roupa e ir para o banco junto com o defunto. Coloquei o corpo sentado e me abracei a ele. A primeira vez que a ruiva sorriu.

Ela pegou uma máquina fotográfica e começou a tirar fotos minha e da minha companheira. Quando eu pensava que não ia mais acabar ela tirou algumas notas de cem do porta-luvas e me entregou. Me vesti e voltei para o bar.

- E aí, pegou a morta? – debocharam meus amigos.

- Peguei.

BOBAGENS


Cada um procurava fazer o seu melhor olhar de preocupação possível. Todos usavam a velha técnica de franzir a testa enquanto ouviam cada bobagem que saia de sua boca. Os mais experientes seguravam o queixo enquanto moviam a cabeça de maneira afirmativa. E assim todos escancaravam a submissa vulgaridade de suas personalidades.

QUATRO DOSES DE UÍSQUE


Era preciso coragem. E como eu sempre faço quando preciso dela, entrei no bar e tomei quatro doses de uísque. Então liguei para minha ainda esposa.

- O que você quer? – gritou logo que atendeu.

Desliguei. Precisava de mais coragem. Por isso tomei mais quatro doses e retornei.

- Qual é o seu pro-ble-ma? – disse ela.

- Olha só. Estou ligando na paz. Queria apenas dizer que estou de acordo com o divórcio. Tem como me encontrar?

Marcamos no apartamento que eu estava alugando. 

Quando ela tocou a campainha eu abri a porta já apontando a arma. Ela não demonstrou nenhuma reação e entrou sem nem me olhar e sentou-se no sofá, cruzando aquelas pernas que já foram minhas.

- Abaixe essa merda e vamos direto ao assunto.

Ela sempre conseguia fazer aquilo. Não demonstrava seus medos. Algumas pessoas são especialistas em esconder seus medos, e com isso conseguem intimidar quem quiser. Esse é o grande truque do ser humano.

Abaixei a arma, derrotado, e comecei a chorar bêbado. Então coloquei a arma na minha boca. Nenhuma reação dela. Engatilhei.

- Atira logo – disse ela. – Já estou ficando excitada.

Comecei a tremer e ela tirou a arma da minha mão. Deixou apenas uma bala no tambor. Girou, apontou para sua cabeça e disparou. Nada.

- Bem, agora é sua vez.

Girei o tambor, engatilhei apontando para minha cabeça. Na hora de disparar virei a arma para ela. Ela voou para o sofá com o impacto e um furo bem no meio da testa. 

Sai para tomar quatro doses de uísque. Eu havia aprendido o truque.

GENTE FEIA


Eu nunca gostei de gente feia. Sim, apesar de eu também ser muito feio. Minha família toda era feia. Meus pais. Meus irmãos. Minha esposa. O mais feio de todos era o meu filho. Certa feita ele me pediu para ir a uma festinha da escola onde estariam todos os pais dos alunos. Embebedei-me antes de ir para enfrentar a situação constrangedora de maneira menos dolorosa. A professora apareceu e me recepcionou sorridente.

- Oi, Sr. Melo, fique à vontade. É muito bom recebê-lo. O  Júnior estava muito ansioso por hoje, não parava de falar no senhor. É uma graça ele.

E ficou com aquela conversa típica de quem, no fundo, não vê a hora de se livrar da gente, mas tentam demonstrar o contrário. 

Nesse tempo o feioso do meu filho foi se misturar com seus colegas. Dezenas de garotinhas ficavam a sua volta querendo tirar fotos com ele e o abraçavam sorridentes. A professora percebeu meu espanto.

- Ah, as meninas  adoram o Júnior. Falam que vão se casar com ele! Imagina? Nessas idades. Essas crianças são fora de série. Não é pra menos, seu filho é lindo mesmo... Puxou ao pai.

Apesar de bêbado, confesso que fiquei um pouco envergonhado com aquilo. Não parecia um deboche. Então ela me chamou até sua sala. Fui logo atrás seguindo seu rebolado que expressava o tema do nosso assunto.

Ela deitou-se sobre sua mesa com o vestido levantado me encarando e disse que a festa foi só um pretexto para me ver. Disse que tinha uma tara por pais de alunos, mas desde que começou a trabalhar naquela escola só via gente feia, exceto eu.

Após ter lavado minha alma e inflado meu ego, chamei o Júnior para irmos embora. Ele demorou um tempo para se livrar do assédio das coleguinhas e veio correndo. Era mesmo bonitão o meu garoto.

- Já vamos, papai?

Expliquei que não gostava que ele ficasse andando com aquela gente feia.

UMA PONTA DE ARREPENDIMENTO


Foi quando eu estava no shopping com a minha esposa e nosso filho. Ela entrou em uma loja e eu fiquei do lado de fora com a criança no carrinho. Então vi um grupo de pessoas bebendo e sorrindo enquanto eu segurava uma mamadeira que representava a minha crise existencial e decidi que precisava agir rápido. Preenchi um cheque gordo e um breve bilhete. Deixei dentro do carrinho e sai correndo daquele lugar antes que minha mulher voltasse.

No momento em que estou fechando a porta do táxi, ela aparece correndo desesperada com nosso filho no colo. Ela estava gorda e não conseguia ter muita velocidade. Bato a porta e ela começa a gritar aos prantos – como sempre fazia por tudo. Não tive coragem de encará-la e apenas pedi ao taxista que arrancasse. Nesse momento me bateu uma ponta de arrependimento e cheguei a conclusão de que era para eu ter deixado um cheque menor.