É PRECISO SER MAIS ESPERTO


Lágrimas já nem mais escorriam dos rostos depois de tanto tempo enfiados no velório que já se estendia por horas. É sempre assim. Um bando de gente em volta de um amontoadinho de carne. Dentro de uma caixinha de madeira. Carne pálida. Mal passada, poderia se dizer. E na verdade todos sabiam disso. Cada um dos vivos que ali estavam devia estar com algum pensamento diferente. Uma mulher estava cochilando num banco de madeira. Não agüentou a tirada. Ela ia com a cabeça lá na frente e voltava de um susto, quando de repente, fechava os olhos novamente e cedia para o outro lado. Como se estivesse dentro de um ônibus num dia de verão fedorento. Talvez sonhasse. Sonhos pequenos. Diversos minisonhos.
Enquanto alguém preparava mais café um cachorro entrou pela porta esfregando a bunda no chão. Devia estar com coceira. Ou se masturbava. Ele usava as patas da frente e a parte de trás fica sentada se arrastando debaixo do amontoadinho de carne pálida dentro da caixinha de madeira. Fazia isso em círculos. Um senhor de rosto vermelho pegou uma varinha de algum lugar e espantou o bicho.
– Vamos imundícia. Passa, passa. – Dizia o homem e espetava a varinha.
– Vai logo! – Deu um ponta pé e o cachorro foi embora chorando.
No mesmo instante entrou o dono do amontoadinho de carne pálida dentro de uma caixinha de madeira. Estava visivelmente bêbado. Fedia o pobre infeliz. Chorava. Mas ele era o Juarez, marido do amontoadinho de carne pálida. Tentavam acalmar o Juarez. Ele não ouvia ninguém, estava abraçado como um bebezinho na morta. Cheguei perto.
– Cara, vanha aqui, você está exausto. Todos estamos. – Falei baixinho essas coisas que se falam e que são sempre hipócritas.
Fomos até a rua. Eu sempre levava no bolso do paletó um cantil com um bom uísque que não deixava ninguém beber. Mas fiquei com dó do imbecil. Virou inteiro. Realmente era um imbecil.
Voltou e sentou-se. Silenciou. Estava estranho. Levantou devagar e caminhou até o defunto pálido.
– Viram? Ele só estava muito abalado – resmungou um senhora numa cadeira de rodas sem as duas pernas - ,coitadinho.
Ele começou a passar a mão no rosto do que um dia foi sua esposa. Alisava devagar. As lágrimas retornaram. Tudo de novo. Depois de horas de sossego voltavam aqueles sons de narizes entupidos de ranho. Ele ficava alisando. E colocou a mão dentro das calças que o corpo vestia. Do defunto. Que cara nojento – eu pensei. Ele estava realmente se entregando àquilo. Começaram todos a se olharem.
– Tire a mão da minha filha, seu porco imundo, pervertido. – Gritava soluçando a sogra do homem necrófilo. A festa estava no auge.
A velha se grudou nele e lançou um soco em seu nariz. Um filete de sangue escorria enquanto ele acelerava sua brincadeira. Estava atormentado. É difícil uma perda. A velha pirou. Os dois se foram ao chão. A caixinha com o amontoadinho de carne pálida desabou sobre os dois lutadores. O corpo caiu de bruços. O bêbado arriscou uma investiga subindo em sua amada. Mas foi imobilizado pelo senhor de cara vermelha. E meu uísque acabado. Pensava nisso enquanto assistia os convidados montarem a caixinha de madeira e colocar o amontoadinho de carne pálida lá para dentro novamente.
Tudo se acalmara. O bêbado estava dormindo fundo no banco do carro do rosto vermelho. Já era de manhã. Fui até uma lanchonete e enchi meu cantil com qualquer porcaria barata. Voltei e sentei do lado de fora. O mesmo cachorro atrevido passou por mim. Parecia mais alegre que antes. Dava para ver a expressão. Percebe-se quando um cão está feliz. Suas sobrancelhas ficam arqueadas, sua língua para fora. E eles caminham saltitando e meio de lado. Uma cara de safado. Passou olhando para mim e atravessou a rua. Despreocupado. Às vezes deve ser bom ser um simples cão. Mas para isso é preciso ser mais esperto.