NO TRÊS

- Se você pular eu pulo.
- O problema é se não der certo e as coisas piorarem.
- Eu também pensei nisso, mas vai dar tudo certo.
- Afinal, o que seria o certo?
- A gente parar de enrolar e continuar com o nosso objetivo.
- Bem, então vai primeiro.
- Droga... Não sei, cara.
- Ah, agora você que vai começar a dar para trás. Não mesmo. A ideia foi sua, portanto, lhe dou a honra de sentir a experiência antes.
- Ok. ok. Meus joelhos estão tremendo.
- Os meus também.
- E agora?
- Agora é só respirar fundo, parar de pensar, perder o medo e se entregar para essa imensidão à sua frente.
- Olha, pare com esse papo. Tem um cigarro?
- Como assim? Para que quer um cigarro? Vai querer pensar melhor? Refletir? O momento de refletir já passou, e é por isso que estamos aqui. Tome, é meu último.
- Aliás, não quero. É melhor agir logo.
- Até que enfim pensou como homem
- Com certeza. Imagina o que vão pensar depois de lerem nossas cartas e de repente aparecermos novamente. O que está feito, está feito.
- Gostei. E realmente não podemos mais desistir. Para evitar isso, vou antes. No três. Um... dois... três.


NOITE QUENTE




Já era tarde da noite e o calor estava insuportável. A luz estava cortada e meu apartamento ficava numa posição em que o sol fritava suas paredes na maior parte do tempo. À noite virava uma estufa. Eu suava pelado na cama como porco, apesar de nunca ter visto um porco suar. Não sei se suam.

Vesti algo e fui caminhar perto da praça. Poderia cansar um pouco e conseguir dormir depois de um banho gelado. Realmente cansei. Resolvi sentar um pouco antes de voltar para o banho gelado da minha estufa. Havia bastante pessoas nas ruas. Umas saindo. Outras voltando. Outras perdidas. Eu descansando. Então uma garota sentou-se ao meu lado.

- Com licença. – Ela falou já sentando.
Sempre me pergunto por que as pessoas pedem licença e não esperam a resposta.
Mas era bonita. E era cega e provavelmente tão cansada quanto eu. Todos estavam cansados. Eram daquelas noites cansadas.
- Quente demais hoje. – Ela disse.
- Está um inferno. – Respondi olhando para um mendigo dançando perto do meio fio.

Ela respondeu que se fosse o inferno seria bom. Concordei e disse que talvez o mendigo da nossa frente tivesse mais sorte em ir para lá depois de ser atropelado se continuasse a dançar ali naquele lugar.

- É o Vitor. – Ela disse enquanto acendia um cigarro.
- Conhece? – perguntei prestando atenção nos gestos do Vitor e curioso por ela saber quem era sem enxergar.
- É meu irmão. Esse filha da puta pirou depois que derrubou ácido
sulfúrico nos meus olhos quando éramos pequenos. Meu pai deu uma surra nele e o colocou para fora de casa. Ele nem nos conhece mais. Sei que sempre fica por aí. Já é conhecido.
- Hum. – Respondi. Eu não o conhecia. - O que você faz?
- Sou dançarina do Red Club.
- Puta.
- Dançarina mesmo. Eu não transo com os clientes. As putas transam.

E ela ficou me contando como acontecia o seu show gesticulando como duas mulheres a levavam até o palco onde ela tirava a roupa. Ficava só com o óculos escuro se movendo em torno da barra de ferro com qualquer música que estivesse tocando.

- Na noite de hoje até pelado deve-se passar calor lá. – Comentei.
- Hoje não abre. Estou de folga e...

Um barulho de freada interrompeu a conversa. Seu irmão Vitor acabara de ser atropelado. O motorista apenas desviou do corpo e fugiu sem muita pressa. Em alguns minutos algumas pessoas começaram a aparecer já tirando fotinhos pelo celular e olhando espantadas para o sangue. O prazer enrustido pela morte e sofrimento que as pessoas guardam em algum lugar dentro de si. Estava muito quente. O Vitor estava morto. Nós estávamos cansados.

- O que você costuma beber lá no Red Club?
- Gin com tônica.
- Tenho cervejas ali em casa.
- Ok.

Levantamos para ir embora no momento em que a ambulância chegou. Um homem de farda perguntou se eu havia visto como era o carro.
- Não, senhor.

VERSÃO 2.0

Não amar a Deus sobre todas as coisas; Invocar o nome de Deus em vão; Não guardar domingos e festas de guarda; Não honrar pai e mãe; Matar; Pecar contra castidade; Roubar; Levantar falso testemunho; Desejar a mulher do próximo; Cobiçar as coisas alheias.

Assim poderia ser aquela famosa listinha que conhecemos desde que fomos apresentados aos cansativos textos bíblicos. O que já estamos cansados de ouvir e ler por aí não é nada mais do que um disfarce para esconder os verdadeiros instintos naturais do homem. Somos um bando de selvagens adestrados. É só lermos a versão citada acima. Calma e refletidamente. Não é difícil sentir uma sensação boa percorrer o corpo. Uma sensação de liberdade. Agora, se lermos a versão original, mal conseguimos nos concentrar. É bem mais chato. Prova é que nunca conseguimos decorar. A não ser alguém que leve à risca a sua crença de estar sendo avaliado por um deus que está em todos os lugares ao mesmo tempo

Ter crenças é comprovadamente saudável. Mas alguns passam dos limites. Fico imaginando um fanático comendo sua esposa fanática pensando se deus está ali batendo uma sagrada. Sentado na poltrona como um voyer imaculado.

E nos sentimos mais à vontade lendo a versão 2.0 dos mandamentos simplesmente porque todos já contrariaram no mínimo uns 7 dos 10 mandamentos. E nem se trata de opção por transgredir regras. Apenas agimos naturalmente. Quantas vezes, só hoje, você invocou o nome de Deus em vão nem deve lembrar. Sem contar que é mais fácil alguém amar o carro importado do patrão do que a si próprio. Então quem dirá amar a Deus em primeiro lugar. Portanto, deixais de lado a vossa hipocrisia.

É PRECISO SER MAIS ESPERTO


Lágrimas já nem mais escorriam dos rostos depois de tanto tempo enfiados no velório que já se estendia por horas. É sempre assim. Um bando de gente em volta de um amontoadinho de carne. Dentro de uma caixinha de madeira. Carne pálida. Mal passada, poderia se dizer. E na verdade todos sabiam disso. Cada um dos vivos que ali estavam devia estar com algum pensamento diferente. Uma mulher estava cochilando num banco de madeira. Não agüentou a tirada. Ela ia com a cabeça lá na frente e voltava de um susto, quando de repente, fechava os olhos novamente e cedia para o outro lado. Como se estivesse dentro de um ônibus num dia de verão fedorento. Talvez sonhasse. Sonhos pequenos. Diversos minisonhos.
Enquanto alguém preparava mais café um cachorro entrou pela porta esfregando a bunda no chão. Devia estar com coceira. Ou se masturbava. Ele usava as patas da frente e a parte de trás fica sentada se arrastando debaixo do amontoadinho de carne pálida dentro da caixinha de madeira. Fazia isso em círculos. Um senhor de rosto vermelho pegou uma varinha de algum lugar e espantou o bicho.
– Vamos imundícia. Passa, passa. – Dizia o homem e espetava a varinha.
– Vai logo! – Deu um ponta pé e o cachorro foi embora chorando.
No mesmo instante entrou o dono do amontoadinho de carne pálida dentro de uma caixinha de madeira. Estava visivelmente bêbado. Fedia o pobre infeliz. Chorava. Mas ele era o Juarez, marido do amontoadinho de carne pálida. Tentavam acalmar o Juarez. Ele não ouvia ninguém, estava abraçado como um bebezinho na morta. Cheguei perto.
– Cara, vanha aqui, você está exausto. Todos estamos. – Falei baixinho essas coisas que se falam e que são sempre hipócritas.
Fomos até a rua. Eu sempre levava no bolso do paletó um cantil com um bom uísque que não deixava ninguém beber. Mas fiquei com dó do imbecil. Virou inteiro. Realmente era um imbecil.
Voltou e sentou-se. Silenciou. Estava estranho. Levantou devagar e caminhou até o defunto pálido.
– Viram? Ele só estava muito abalado – resmungou um senhora numa cadeira de rodas sem as duas pernas - ,coitadinho.
Ele começou a passar a mão no rosto do que um dia foi sua esposa. Alisava devagar. As lágrimas retornaram. Tudo de novo. Depois de horas de sossego voltavam aqueles sons de narizes entupidos de ranho. Ele ficava alisando. E colocou a mão dentro das calças que o corpo vestia. Do defunto. Que cara nojento – eu pensei. Ele estava realmente se entregando àquilo. Começaram todos a se olharem.
– Tire a mão da minha filha, seu porco imundo, pervertido. – Gritava soluçando a sogra do homem necrófilo. A festa estava no auge.
A velha se grudou nele e lançou um soco em seu nariz. Um filete de sangue escorria enquanto ele acelerava sua brincadeira. Estava atormentado. É difícil uma perda. A velha pirou. Os dois se foram ao chão. A caixinha com o amontoadinho de carne pálida desabou sobre os dois lutadores. O corpo caiu de bruços. O bêbado arriscou uma investiga subindo em sua amada. Mas foi imobilizado pelo senhor de cara vermelha. E meu uísque acabado. Pensava nisso enquanto assistia os convidados montarem a caixinha de madeira e colocar o amontoadinho de carne pálida lá para dentro novamente.
Tudo se acalmara. O bêbado estava dormindo fundo no banco do carro do rosto vermelho. Já era de manhã. Fui até uma lanchonete e enchi meu cantil com qualquer porcaria barata. Voltei e sentei do lado de fora. O mesmo cachorro atrevido passou por mim. Parecia mais alegre que antes. Dava para ver a expressão. Percebe-se quando um cão está feliz. Suas sobrancelhas ficam arqueadas, sua língua para fora. E eles caminham saltitando e meio de lado. Uma cara de safado. Passou olhando para mim e atravessou a rua. Despreocupado. Às vezes deve ser bom ser um simples cão. Mas para isso é preciso ser mais esperto.